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BLOOM-TREE, 2005 

BIOGRAFIAS *

Virgílio era um rapaz beirão da família do malmequer. Sorte na vida nunca teve por herança da má-esperança. Todavia era com tudo virtuoso porém… mas todas as virtudes se encontravam no fundo do poço e da beira ele nunca saiu.

 

Morreu atropelado à beira da estrada numa ida ao café.

 

 

 

Amélia vivia no descaramento e era da família da háquia-picante. Amélia teve seis filhos: um vegetal lenhoso, um líquene ranhoso, um aspergilo, um aspermiceto e uma leguminosa. Certo dia, cansada da vizinhança, emigrou para onde voltasse a ter cara. Olhou-se ao espelho e descobriu que afinal era uma rosa romântica. Conheceu o António da família do chorão-das-praias.

 

Morreu de morte natural - como se houvesse - deixando António a passear sozinho junto ao mar.

 

 

 

Roberto não tinha família. Um dia disse, ao deparar-se com o facto de ao ser humano ser permitido viver uns escassos setenta anos.

“Deus não dá muito, para que o pouco ganhe em significado e para que a gratidão não se extinga.”

 

Morreu gelado pelo gelo num passeio de Inverno.

 

 

 

Maria Manuela Trepadeira, era e que hera e sempre se orgulhou disso. Felicidade nunca lhe faltou por isso dela nunca se orgulhou.

Um dia viram-na encostada à soleira da porta tão assolada como assolapada, e desolada disse:

 

“todo este vazio…

porque é que há tanta humidade na humanidade?

Porque é que não somos secos como a pedra, o pó…

Transparentes como o vidro…

Porque é que há na Terra água, na água vida, na vida tanta evaporação, na perda tanta emoção e a razão que solidifica isso que depois derrete…”

E nisto começou a chorar…

 

Morreu nesse dia ainda jovem e escreveram o seu nome no passeio de calçada portuguesa.

 

 

 

General Hermínio era de uma velha e respeitada família de coníferas. Cresceu acompanhado de muito brasão provocou muita explosão e assim recebeu muito medalhão. Todo ele condecoração nunca nada soube das coisas do coração.

 

Morreu de explosão de raiva com o empregado de mesa de um restaurante, isto num solitário passeio turístico às Honduras.

 

 

 

Clarice era uma ailanthus altíssima. Não é que para ela tivesse importância mas era de facto da família da árvore-do-céu. Clarice nunca viveu acordada nem nunca soube o que é o sonho, o que fez com que ninguém a levasse a sério e poucos a guardaram na memória.

 

Morreu de queda na escadaria de um centro-comercial. Mas também já era velha, embora dissesse que não.

 

 

 

Mário perdeu a família logo à nascença mas diziam-no semelhante ao musgo. Para seu próprio consolo Mário dizia sempre que nada se perde, tudo se transforma. Certo dia perdeu o juízo e transformou-o em teoremas matemáticos.

 

Morreu sozinho num passeio por sua casa e deixou muitas dívidas.

 

 

 

D. António de Valdívia era capitão da família da infantaria de Sua Majestade, espécie de figueira-do-inferno, e que se lembre nunca teve idade. Assim sendo nunca teve saudade, também nunca teve verdade mas nisso nunca houve vaidade. Certa vez sofreu, por um jovem rapaz, um amor daqueles que arde.

O rapaz em homem morreu na guerra. António não.

 

Morreu afogado numa vala inundada pela chuva num passeio fora da cidade.

 

 

 

Jorge Manuel era da família da erva das pampas, era tomado por importante porque sempre fez muito alarido. Sempre foi aquilo que não disse e sempre disse aquilo que não era. Mulheres nunca lhe faltaram e deixou filhos pelos trópicos e pelo equador.

Houve um dia em que sentiu dor mas não se sabe a razão de tal excepção.

 

Morreu afogado na sua indigestão num passeio pelas ondas.

 

 

 

Maria Cristina, algarvia, era da família das azedas porém foi sempre um doce de pessoa. Não só era um doce como era uma pessoa alegre e muito apreciada pois também era muito simpática e apreciava a alegria dos outros. Maria Cristina abundava em generosidade e toda a gente lhe elogiava o sentido de humor assim como o seu bom senso.

 

Morreu por excesso de células no corpo num passeio pela vida.

 

 

Gabriel era da família do marmelo e por isso chamavam-lhe de Lucky kid.

Lucky Kid era uma criança feliz.

sorriu sempre que alguém quis

foi sempre o que se diz

bateu na porta com o nariz e apareceu-lhe um  tique!

A felicidade caiu-lhe a pique!

Primeiro sorriu-lhe e depois caiu-lhe.

Suicidou-se-lhe a felicidade e apareceu-lhe a verdade:

A contorção da cara e pescoço até se lhe vêr o osso

Alternada com espasmos no lábio inferior

e o tremido dos dedos mindinho e anelar

juntamente com um som gotural que lhe provoca falta de ar.

 

Gabriel não morreu, emigrou para longe deixando apenas uma fotografia de quando era jovem.

 

 

 

O Pereira era da família da laranjeira. O pobre senhor sofreu de tédio toda a sua vida. Bebia por alívio da alma que ia para cima dos 60 gramas. Um dia ele não aguentou, mandou tudo às urtigas e voltou a chorar para casa dos pais. Nunca mais arranjou noiva, dedicou-se à filosofia e à poesia mas como não ouvia o que lhe diziam só escreveu duas palavras.

 

Morreu num verão quente de Agosto num passeio pelo terceira palavra.

 

 

 

José era um padre da ordem de São Jerónimo, mas antes era da família da erva da fortuna. O bom Deus nunca o deixou em apuros mas muita coisa ficou por apurar. A sua vida passou-a a engordar procurando com fé transcender a sua dimensão. Manteve boas relações com a corte, conquistou o seu porte e nunca pensou na morte.

 

Morreu à noite, a dormir, e meteram-no no sarcófago. Tinha ainda uma ameijoa passeando-lhe pelo esófago.

 

 

 

Eu era da família da acácia-longifolia. Muito longe nunca fui pois antes de lá chegar acabava sempre por cair no ridículo.

O passeio foi circunscrito mas para mim, claro, bonito.

 

Morri de modo drástico, num destes dias, com alguém que me afagasse compassivamente o cabelito.

* escrito para a performance “Bloom-tree”, co-criação com João Garcia Miguel, integrada no evento Bloom – Arte e jardins efémeros, na Fábrica da Pólvora.
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