MODELO, 2025
O MODELO acorda estremunhado, o cabelo na cara, meio sujo, enramelado… não gosta nada de se sentir assim, tão exposto e tão pouco exemplar.
A UTOPIA ri-se com a imagem – Ahahah
O MODELO fica um pouco chateado. Depois olha à sua volta e acha tudo estranho. Figuras, corpos e formas que já não reconhece, tudo desarrumado, denso, demasiado caos para o seu gosto…
A UTOPIA continua a cirandar, mãos nos bolsos, olhar de troça.
O MODELO: Pára com isso… não me chateies
A UTOPIA: Acorda pá! Ainda não acabou o teu turno… Olha! Vais ser reproduzido outra vez. Compõe-te! Mostra o que vales!
- Ahhhhhh! - O MODELO contrai-se todo dentro de si próprio.
- Pow! Pronto já foi… - diz a UTOPIA
O MODELO: Estou tão cansado utopia… temos de falar.
A UTOPIA: Que foi agora? Estes modelos… não se aguenta tanta frescura
Gostava de ser substituído… dói-me tudo – diz O MODELO
Lamento – diz A UTOPIA – És o único modelo disponível, parece não haver alternativa.
E O MODELO: Parece ou não há mesmo?
A UTOPIA: Hummm… não sei. Se há não conheço, se houve já não me lembro...
O MODELO já um bocado irritado: Então inventa outro modelo! Acaba comigo! Olha bem para mim… todo gasto… já sou a representação da representação do que representam os representantes representativos de uma ideia, de um desejo, de um sonho qualquer, eu sei lá. Já não me lembro onde tudo isto começou. E se calhar, apesar de... atraente, sim, nunca fui grande coisa. Isto já é só mau teatro.
A UTOPIA: Ahah! É divertido ver um modelo a desconfiar da aparência.
Oh! - Diz O MODELO - Mas eu não era só um modelo vazio e fútil! Eu carregava novas ideias e expectativas e liberdades e fantasias mas depois fui-me concretizando e...
A UTOPIA: Sim, liberdades para uns, fantasias para outros...
Mas eu sou real, ahn! Muito real… todos o dizem. - continua O MODELO - Sou mesmo hiper ou supra-real! Ouviste?
A UTOPIA enfadada: Sei, sabemos, sabemos todos...
e ainda O MODELO: E quem és tu Utopia para questionar a minha concretude? Se não fosse eu que seria de ti? Um gesto? Um passo de dança? Uma ilha encantada? Uma revolução? Eu dei a oportunidade a que cada um, por seu esforço e mérito pudesse…
O MODELO percebe que ficou a falar sozinho. A UTOPIA tinha-se ausentado para ir buscar um cocktail, estava cheia de calor. E entretanto o modelo foi reproduzido mais 3 milhões de vezes
Ahhhhhh! Estou cansado... tão cansado… ajuda-me Utopia, eu só posso contar contigo – O MODELO percebe que tem de mudar de estratégia - O que é que ainda esperas, o que ainda se espera de mim,? Desta forma exausta, solitária, discriminatória… eu já nem me tenho em pé. Sou como um réptil, no chão, velho, ultrapassado, o sangue esfriou… já não sinto nada… nada!
A UTOPIA: Ah pois… não te é confortável a horizontalidade, não é?
O MODELO não apanha a ironia e continua: Aquele fogo, aquele brilho sabes? A minha suposta liberdade, liberalidade, libertinice, líbidinice, já se apagou... Foi toda consumida...
Eu sei, que há ainda uns quantos que até estão bem… mas o meu corpo não aguenta mais ser vendido. E nunca pensei que fosse isto que quisesses para mim Utopia.
A UTOPIA: Mas é que tu não eras só para ti modelo...
O MODELO quase a fazer beicinho: É que eu ainda sou do tempo em que se perguntava às crianças o que é que queriam ser quando fossem grandes. E eu fiquei a achar que poderia continuar a escolher. Não é justo...
A UTOPIA suspira impaciente: Então mas quando te perguntaram o que é que respondeste?
O MODELO: Oh… Que queria ser modelo, claro, mas… mas… É que eu gostava de ainda ser apreciado.
A UTOPIA: E és, meu amigo, e és… (outro suspiro)
O MODELO: Mas eu só vejo gente insatisfeita.
A UTOPIA: Pois, sim, a maioria sim…
O MODELO: Desiludiram-se..
A UTOPIA: Não, acho que ainda não. A ilusão, de um modo geral mantém-se.
O MODELO: Então ainda têm esperança?
A UTOPIA: Esperança? Esperança não. Ahaha… isso já não. Não há.
O MODELO: Então? Para que é que eu sirvo?
A UTOPIA: Expectativa. Expectativa ainda têm.
O MODELO: Em mim?
A UTOPIA: Sim. A expectativa que continues a ser muito lucrativo.
Ahhhh…. - e O MODELO prolifera - Estou feito… dói tanto. É como se me esticassem a pele para ser vestido mais uma vez, mas os elásticos partiram-se. Eu já perdi a flexibilidade, a tolerância, só não perdi a pose. Esta pose de um corpo branco, demasiado branco, e magro, demasiado magro, em idade ainda mais ou menos produtiva e reprodutiva sim. Mas já visto, muito visto e entretanto… não quero mais.
A UTOPIA: Mas isto é conforme te apetece? Quando eras todo glorioso, cheio de promessas e desenvolvimentos e oportunidades estava tudo bem. Não te importaste quando ganhaste o 1º lugar, o melhor dos modelos e foste, um a um, ofuscando, aniquilando mesmo, outros modelos possíveis, pois não?
O MODELO: Eu sei, lembro-me bem… era tão belo e sempre original!
Só uma vez – interrompe a UTOPIA
Ahn? - interroga O MODELO
Foste original uma vez. Uma única vez. - esclarece A UTOPIA - Se querias continuar original não fosses para modelo.
O MODELO: Eu era um modelo único sim! Mas agora sinto-me muito só… acho que estou a enlouquecer. Já nada se parece verdadeiramente comigo sabes? Eu sei que tentei ir regulando o comportamento das pessoas até quase deixarem de o ser... Estiquei-me um bocado, mas agora acho que já só me aturam por obrigação.
A UTOPIA: Sim, pois... Mas olha que muitos ainda te respeitam, se é por fé ou por medo ou por hábito não sei… Por isso não te queixes. Eu também me sinto só! Pior, esquecida, abandonada, inexistente...
Tu pelo menos estás aí bem à vista, todo escancarado… e todos escrevem sobre ti
O MODELO: Mas eles que escrevam, desenhem, inventem outras coisas
Mas é sempre sobre ti, sobre o teu corpo, a tua forma de modelo - continua A UTOPIA - Mesmo quando estão zangados e te querem destruir! Fantasiam o teu fim ou mesmo um possível “pós-tu” mas é sempre a partir de ti. Tu sempre tu! Uma obsessão. E tu até isso aproveitas… e reproduzes reproduzes reproduzes
(Ahhhhh- ouve-se O MODELO a reproduzir)
… e pronto, best-seller! Tomas tudo para ti. Nem percebo como é que estás tão magro… com a tua boca enorme e a tua pele que absorve tudo tudo… para depois… lixo. Tens um metabolismo rápido. Alucinante mesmo.
O MODELO: Pára com isso Utopia… deixa-me, deixem-me deixem-me em paz...
Agora a sério, gostava de ter alguma privacidade.
A UTOPIA: Bom, vamos lá ver, tu não és um modelo privado, ok? Tu és privativo. Tu privas, privas muita gente.
O MODELO: Sim, sim. Eu sei. E começo a sentir alguma vergonha, confesso… mas não sei lidar com isso, não sei lidar com a culpa. Nunca soube… Mas desculpa, ok?
Vá lá… arranja lá outro modelo... Será que há aqui algum disponível?
Tanto O MODELO como a UTOPIA ficam a olhar em volta, a analisar os corpos presentes por um breve momento. Mas parecem todos já demasiado reais para servirem de modelo.
Pois… acho que não. Teria de se inventar um… e eu gostava muito de te ajudar meu amigo, mas, reformei-me. Acho que já nem para ficção sirvo – diz A UTOPIA enquanto acaba num trago o cocktail já pouco fresco.
O MODELO numa derradeira tentativa: Mas, mas, onde está aquela força criativa que te animava? Tinhas tantas formas e cores e raiva e desejos invulgares, de justiça e acordos e visões globais, universais mesmo. Lembras-te? Com virtudes, harmonia, tudo boa gente…Todo o bem comum...
A UTOPIA com um bocejo forte: Pá… já não tenho tempo
Não tens tempo? Como não? Se estás reformada não te faltará tempo… Ahn? - diz O MODELO já em desespero mas em tom de brincadeira para disfarçar a fraca argumentação.
A UTOPIA: Chiça Modelo! Às vezes és mesmo limitado… Olha lá, o tempo que me falta não é o meu, é o deles, da malta, das gentes. É esse o tempo que eu preciso para trabalhar! Mas estão todos muito ocupados...
O MODELO: Mas não têm tempo porquê?
A UTOPIA: Oh… Têm de pagar a renda então.
O MODELO: Mas alguns… alguns têm! Eu sei que têm.
A UTOPIA: Sim. Mas se tiverem tempo obrigam-nos a gastá-lo
O MODELO: A gastar em quê?
A UTOPIA: No que quiserem.
O MODELO: E o que é que querem?
A UTOPIA: De um modo geral?
O MODELO: Sim.
A UTOPIA: Modelos. Comprar modelos. Modelitos. Ahahah (um riso já nublado pela amargura)
O MODELO a perder a paciência e com a voz trémula dos nervos: Mas modelos de quê?
De utopias?
A UTOPIA: De distopias caro modelo. Já não há imagens para a utopia… ou melhor, há mas ficaram assim penduradas, à espera. Porque agora a procura é de distopias, acham mais interessante e menos vá… infantil e perigoso.
O MODELO mas para quê sonhar com distopias em vez de utopias? Não percebo não percebo…
A UTOPIA: Calma modelo. Tu tem calma! Não é que as desejem, e se sonham é mais em forma de pesadelos… mas faz com que isto do Presente não pareça tão mal assim. Tás a ver? É que pode vir a ser pior… e isso dá algum consolo mas também alguma adrenalina ao dia a dia tal como está. Eles querem ser felizes agora! Agora!
O MODELO: Estou triste, sinto-me tão triste. Um modelo no meio da miséria ideológica, é só um trapo velho...
A UTOPIA: Pois mas já não dá para inventar utopias. Está tudo cheio… e se não há vazio não há espaço para possibilidades. Percebes agora?
O MODELO: Cheio? Mas cheio de quê?
De ti! Ahahahah - A UTOPIA ri de um modo cínico.
O MODELO chora: És impossível! És mesmo impossível...
A UTOPIA: eu sei eu sei…
Depois a UTOPIA começa a chorar e o MODELO começa a rir desvairado como se lhe fizessem cócegas. Toma um comprimido e vai dormir. Mas não sonha. O MODELO não sonha.
A UTOPIA sim, sonha. Mesmo acordada. Fica assim parada a sonhar.