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2020

AQUÉM

 

Certo dia, num início de Primavera, deu-se a suspensão do mundo, do mundano, do mundial.

Mundança.

Dançar dentro de corpos parados num pas-de-deux com a solidão.

Enquanto isso as flores abriam e as folhas apareciam em pequenas explosões de rebentos. Quase os conseguíamos ouvir, como sofregos recém-nascidos a encher os pulmões, a celebrar o final da gestação e a reclamar a violência de um novo estado.

 

Queríamos um novo estado.

 

Enquanto isso apertávamo-nos dentro das casas e corríamos às janelas.

 

O sol andava à volta das casas.

 

Enquanto isso abríamos a boca a exercitar a mandíbula mas sem grande opinião para gritar.

 

Os gritos mastigavam-se dentro do quarto.

 

Deitávamos um olhar atento às mesmas imagens das paredes, às janelas dos vizinhos, às vistas largas para dentro, sem ser notados.

 

Nada digno de nota.

 

Enquanto isso deixámos de saber ser orgulhosamente ocupados pelas demandas do antigamente.

 

Mas tínhamos saudades.

 

Saudades da pequena vaidade de não ter tempo.

 

Convites, projectos, produtos a laborar e a difundir, multiplicados, inchados, cheios, repletos de qualidades e do seu reconhecimento, a voar brilhantes e desmembrados pelo devir da comunidade.

 

Saudade.

 

Aquela comunidade unida nos foyers das salas sociais ou num passo apressado do daqui para ali. “Olá tudo bem? A quem?”

 

Aquém.

 

E o aqui era agora também ali que era igual a ontem e muito semelhante a amanhã e, depois disso, não sabemos.

 

21/03/2020

 

 

 

LIBERDINAGEM

 

Dias de consciência do gesto. O resto da humanidade no seu controlo. Indigesto. Funesto o gesto que toca, escorrega e se espalha. No que calha. A maralha. Estar único e com tudo em mente. Uma semente.

Polinização daninha.

 

(O ano passado chorou-se a possível extinção das abelhas)

 

Polinizar o bem. Polinizar o mal. Bem. Mal. Bem mal. Certo? Errado.

Nunca a dança foi tão pensada. Coreografar a redução do movimento. Lento. Doendo. Doente. Uma dança doente e o fim do automatismo.

No interior um sismo.

Nervo por dentro polido por fora. E agora?

Como era eu na espontânea acumulação de hábitos?

Ser natural e um derivado da culturalidade. A idade.

Lembrar-me-ei? Lembrar-nos-emos? Valerá a pena lembrar?

Dançar sozinha a mesma dança de todos os outros. Ainda sem jeito e sempre por defeito.

 

A liberdadura. O liberalidadismo. A liberdinagem. A libertassualidade venceu-nos e, a nós, doeu-nos.

 

22/03/2020

 

 

 

NOVO TEATRO

 

A luz do público obscurece tudo.

 

Apagar a voz.

Relaxar a língua e mastigar bem.

Ser invisível e preencher mundos engolidos.

Ter sonhos com beijos em práticas proibidas.

Enrolar a língua numa outra muito só.

Encostar a cabeça.

Deixá-la cair e levantá-la de novo.

Como quem adormece numa viagem

a viajar sem encosto.

De assoalhada em assoalhada, nada.

Perder-se no fim, voltar atrás e deixar para mais tarde.

Relaxar a língua garganta adentro, cantar sem sol e ser humilde.

Sentir vergonha de tudo isto e pedir desculpa caminhando pelo corredor à espera da resposta redentora.

Não ter resposta.

Colar os dias para não os contar e contar que amanhã estará tudo bem.

Ser então perdoado e voltar a brincar.

Ao mesmo.

Sem querer o mesmo. Lutar pelo mesmo. Odiar o mesmo. Comer do mesmo. Decepar o mês... Vazio.

 

Trinta oportunidades para nada e não os vencer.

 

“A natureza não tem de se esforçar para ser importante. Já o é.”

R. Walser

 

23/03/2020

 

 

 

 

 

PAPEL HIGIÉNICO

 

Tirei uma senha e fiquei à espera. Olhei-a mas não se via números, nem links nem olhares de medo. Outras pessoas faziam fila para tirar a mesma senha. A fila corria. Porta fora. Dava a volta ao quarteirão e depois seguia, alegremente, para fora da vista. Uns aguardavam em pé, outros sentados, mas todos cansados. Olhos fixos a medir os centímetros entre nós.

No atendimento estava alguém sem saber em que número estávamos. Frequentemente os alguéns ausentavam-se mas não era para almoçar, era para ir tirar uma outra senha.

As senhas, em rolo, estavam sempre a acabar e então esperávamos um pouco mais. Alguém iria mudar o papel em falta. Em rolo. Esgotado no stock. E o stock à espera de ser levado sem saber por quem ou para onde.

 

Todos sabíamos que qualquer folha vazia serviria o mesmo fim mas, entretanto, esperava-se. Mantendo o olhar limpo no branco da senha como se em breve nos falasse.

 

Qualquer coisa.

 

24/03/2020

 

 

 

DEFECAÇÃO

 

É tempo de lavar mantas e cobertores. Sacudir, estender, pôr a arejar. Revirar o que nos cobre os sonhos e expô-los nas janelas e nas varandas. Herdados de outras gerações, comprados na feira ou no ikea. É o que há.

Não temos vergonha. Não temos intimidade.

Só temos intimidade. E devemos ter vergonha para a conseguir expôr.

Exibir a falta.

Esvaziemos o corpo por dentro das roupas ingeridas. Calcemos os dias de pantufas para ir colher coentros.

Assim.

Mostrar o nada que ri e editar o vazio que se esconde.

Compor o tempo como uma música sem final. Entediante.

Ser um composto para o que aí vem em camadas desorganizadas de memórias e futurologia.

Alegrias. Alergias.

Aquecer a comida de ontem para desfrutar de um sabor diferente e ter tempo para descascar a fruta.

Atentos à transformação e tão calados pelo silêncio imposto a amplificar as neuroses comuns.

Todos disfuncionais.

Que consolo.

Dia a dia mais um dia falhado. Mais um dia encontrado. No chão. Sem lugar na agenda.

Memoráveis são os tempos de alívio e medo e qualquer moda é mais passageira que a minha manhã de hoje.

 

Um dia haverá que toda a vida será íntima. Da defecação à entrega dos óscares.

 

25/03/2020

 

 

 

VIA RÁPIDA

 

Para já, escrever sempre no plural.

A pretensão do outro. Novas manias.

Dias de particar a universalidade. De obscuridade. A enervar-me na solidão da greve.

Geral.

Sempre a imaginar o mundo inteiro.

Primeiro.

E depois então olhar-me nos olhos.

Folhos.

Dobras desdobradas de mim.

Estender numa passadeira vermelha a clarividência de ver passar tudo o resto.

Na sua ausência.

Reticências de uma porta aberta mas fechada.

A espalhar singularidades como se fosse a única.

Como se fosse a última.

E querer cozinhar todos os sentidos numa acção só.

Sozinha.

A limpar.

Pó.

Coleccionar pensamentos importando ouvidos. Olhar para o gato e logo cair de sono.

Sem luta.

Não sou daqui. Sou quem espera do lado de cá de uma via rápida à espera de nunca a atravessar.

Olhar para ambos os lados mas só me ver a mim. A ler jornais.

E não querer mais os dias normais.

Incluir todas as questões do mundo?

 

Não mais que caprichos.

 

26/03/2020

 

 

 

O PUNHO

 

Intocável. Imbeijável. Inabraçável. Inabarcável. Não esfregável. Incontornável.

Nem contorno nem sentidos.

Mão sem razão e sem coçar.

A cara fechada. Bocas e olhos com horário reduzido.

Sem o espelho dos outros como conhecer a própria cara?

Cara cara. Apenas guardada a sua imagem.

As mãos perdidas em luvas e bolsos. Bêbedas de álcool e sabão. Fora do horário de trabalho a manufacturar os dias sem conseguir dar forma ao tempo. Horas extraordinárias.

O dinheiro mais sujo ainda.

Procuramos camaradas. Fixar encontros em ideologias e esventrá-las. Criar palavras de resistência e largá-las por cima de uma casa de lava. Degustar as palavras dos sábios, perdidos no deserto a balbuciar areia. E logo a seguir confundi-las por não as poder por a dançar na mesa do café.

Comi tão depressa que nem me lembro o que era.

 

Talvez o corpo. Talvez se lembre. E erga o punho a dois metros de distância.

 

27/03/2020

 

 

 

GORDURA

 

Daqui para a frente serão as traseiras o lugar onde tudo acontece.

O sítio de estar em estado de sítio. Excepcional. Provisório.

 

Logradouros e saguões.

 

Serão a frente da comunidade unida na desvalorização da fachada.

A fachada fechada. Parede virada do avesso.

Contemplar as costas e os seus sinais do tempo.

O largo de uma pequena aldeia, livre e esquecido pela nação.

Escadas de incêndio a serem usadas no dia a dia da combustão da matéria humana.

 

E no quintal um grelhador à espera de entremeadas conversas com os amigos de antes num futuro imaginado.

 

A pingar gordura de saudades e a atiçar a chama.

 

28/03/2020

 

 

 

DOR NOS JOELHOS

 

“Está quieto. Deixa-me. Larga-me. Pára!”

E um silêncio de fim de brincadeira.

“Se calhar exagerei…”

 

Esta voz aflita no meio de brincadeiras de irmãos parece a que agora ouvimos vinda do centro ardente da Terra, do céu imenso para lá do que vemos, ou da superfície de onde brotam as ervas e que antes podíamos espezinhar com os nossos ténis.

 

E paramos.

 

“Foi sem querer. Desculpa.”

 

A quietude como se a tivessemos inventado.

 

Até que uma dor nos joelhos por falta de articulação nos relembra a mobilidade e lá vai a quietude cair no alguidar dos deveres junto à casca da ervilha.

Todos a reinventarem-se como Bartlebys que nunca antes tinham tido boca para preferir o não.

 

Fazer direitos e deveres como quem janta e lava a loiça ao mesmo tempo.

 

29/03/2020

 

 

 

GUERRA

 

Ultimamente chega a meio e farto-me dele. Vejo-me a desejar que venha outro. Um novo.

Antes ele chegava ao fim e eu insaciada.

Agora, que menos faço, canso-me muito mais depressa.

Recolhendo-me no meu tropismo sinto-me vegetal e inconformada.

Perco-me a meio do caminho, da Terra em redor do Sol, e lanço-me numa irresistível sensação de lhe trocar as voltas, a direcção, a velocidade. Não ter pudor e redesenhar as regras do todo.

 

Estarei finalmente a concordar com a natureza?

De tão despida estou pela falta de demandas?

Não mais é suficiente acender as luzes para apagar as estrelas, dormir a sesta por rebeldia, espremer-lhe os limões ou proteger-me da chuva. Não!

 

Chega a meio e farto-me dele. Do dia.

 

Era imenso o poder de fazer uma coisa para descansar de outra, estar com alguém para descansar de mim, estar com outro alguém para descansar de ti, estar numa multidão para descansar do outro ou estar sozinha para descansar de tudo o resto.

 

Afinal é verdade que estamos em guerra. Sempre estivemos.

 

E como justificar o trocar de roupa?

 

30/03/2020

 

 

 

 

MEMBRO DA FAMÍLIA

 

Aprender a não saber, vírgula.

Levantar a caneta voltar a mergulhar e acertar em cheio no meio do mar. Que não tem meio.

Flutuar sem conhecer a morte. A sorte que, por sorte, é o oposto da morte.

 

Aprender o desenho de novas palavras mas ver nos mapas apenas geografia.

Contar números como quem conta os carneiros.

Por fim adormecer.

 

Não saber acordar nem o que fazer para o almoço.

Comer a resposta.

Considerar para não esquecer o que se aprendeu a lembrar:

- nesse saco sem fundo pouco mais que um mundo.

 

Aprendemos a fazer jogging.

A usar ténis de corrida em casa e não saber como limpá-la. Como acalmá-la. A casa.

Então dormir.

 

Estranhar as imagens de um passado penteado e alisar as ideias durante a angústia da insónia.

Esboçar a lápis aquelas imagens nunca vistas. Apagá-las com muita força, com a borracha, e encantarmo-nos com o magnífico buraco no papel.

Gostar do papel.

 

Roçar nele como numa pele e ver-me a pelar por mais tempo, para não esgotar a cabeça com ideias já feitas. Absurdas. Fazer do absurdo um membro da família e obedecer-lhe como a um pai.

 

Olhar a razão desmontada em peças e perder a ordem da beleza de cada uma delas.

 

Olear as peças. Todas. Para que não encaixem.

 

31/03/2020

 

 

 

IMPORTAÇÕES

 

Como assim o barulho de uma sirene?

Haja respeito pelo sossego das casas. Pelo estar dentro a não ver com os próprios olhos.

 

How dare you?

 

Terríveis frequências agudizaram-nos os sentidos e fomos arrancados da nossa gravidade, imersa em leituras.

Agora.

Orelhas de gato em bico e imaginação activa.

Nós sem saber.

Se bombeiros, Inem, polícia ou a chamada para o ponto de encontro de emergência para onde os velhinhos do bairro correm o mais que não podem.

E ainda sem saber.

Dívidas ao banco? Assaltos? Alguém caiu? Um governo? Desistimos já? Rendemo-nos?

Posso continuar a ler?

Piedade de nós embalados nas casas a olhar o som que paira.

Gráficos e números, ao minuto, ao segundo.

E no próximo segundo a sirene pára.

Assim, sem aviso e sem explicação.

 

How dare we?

How did we dare?

 

Ficámos na mesma só que agora incomodados.

Chatice.

Chatices.

Chatices são alarmismos sem razão.

 

Um alarme que toca antes de estarmos despertos para qualquer sentido.

A manhã ainda mole e mais outra e mais outra...

E o despertador é certo antes de dormir. A jogar pelo seguro. A abrir antes do tempo o dia que se segue.

Como se o dia precisasse de mim.

 

How do we…

 

Manter os hábitos.

Haverá, de novo, mais de tudo excepto as excepções.

Várias mortes por despedimento informal, alguns recuperados, pontual falta de oxigénio, CEO’s inocentes e festas de aniversário sem bolo.

O despertador toca e recomeçamos.

 

Com o coração aos pulos.

 

01/04/2020

 

 

 

TAÍNHAS

 

Já não se fala do tempo.

Do verão precoce e da ocupação massiva de uma praia. Da falta de chuva e dos perigos de escorregar na calçada molhada. Nem mesmo dos futuros incêndios e os tomates queimados pela geada.

Só se fala do tempo.

Tempo em espera de confirmação. Semanas de crianças em casa a explodir energia e a cabeça dos pais. Do há muito que já se sabia e de planos futuros sem data marcada.

 

No entanto, já não se fala do que não se fez.

Não conseguir ter ido aos correios ou comprar comida para o cão, desmarcar a consulta, o encontro adiado, não acabar um relatório e vários filmes perdidos, espectáculos falhados e outras obrigações.

Só se fala do que se faz.

Cozinhar alimentos, comprar leite, dormir mal, inventar um jogo, falar a alguém que está tudo bem, arrumar caixas objecto a objecto, hora e meia de narrativas, inchar por dentro, repetir piadas, organizar colecções e plantar alfaces.

 

Como também já não se fala dos saldos nem das questões fracturantes, agora imersas num mar indiferenciado a tentarem saltar como tainhas encandeadas. Encadeadas no mesmo. O mesmo sabor, a mesma língua, o mesmo corpo, o mesmo mar.

As fracturas a doerem no corpo inteiro e a mostrarem a alguns olhos, poucos e vesgos, que só há dois barcos - o que está partido e o que está inteiro.

 

A casa já todos chegamos mas não mais se pergunta como correu o dia.

 

02/04/2020

 

 

 

COLISÕES

 

Carradas de tempo para dobrar a roupa. Toneladas de roupa não usada. Inúmeros usos para as manhãs. Mantas enormes a cobrir as pernas. Montes de músculos não mexidos. Meses de anos anteriores muito mal gastos. Todas as chamadas agora sempre atendidas. Dezenas de dentes cerrados. Mãos cheias de horas devoradas.

 

Abundância.

 

Quilos de arroz na dispensa. Uma quantidade de vidas a pesar. Magotes de encontros a viajar online. Vários cenários antecipados cheios de casas decimais. Famílias numerosas numa só assoalhada. Demasiadas paredes para um só par de olhos. Milhares de abrigos em falta. Muitas candidaturas. Cotonetes. Inusitadas necessidades.

 

Abundância.

 

Diversas volumetrias ao medir a injustiça. Muito idealismo e pouquíssimo jeito para o negócio. Manadas de diabretes dentro de novas cabeças. Novas medidas a nascer, a cada dia. Plantar flores e rabanetes. Os nossos pés. Sopa de preocupações e pedras em colisões aleatórias. Questões empurradas para a frente com barrigas imensas a abrir clareiras.

E a procrastinação legitimada a adiar os dias. Lentamente.Os dias.

A descongelar à beira de um abundante precipício.

 

03/04/2020

 

 

 

POÉTICA

 

Para cantar é preciso ter a barriga cheia e relaxada.

Dizem que o mal se transmite pela expiração de palavras.

Dizem que, quando a fome acontece, os músculos abdominais se contraem e é mais difícil ter voz.

Elogiamos assim a alegria dos pobres que falam e cantam e não têm voz.

 

Cheios de graça nas telenovelas e uma novela vaga no acesso à poesia. A poética da fome. Alho e coentros e pouco mais.

Há uns cansados e aborrecidos na procura de sentido na vida. Há outros procurando a cada dia sentido sobreviver. Cheios de entusiasmo.

 

Pronto.

Fazemos contas à vida.

Estamos horas a foder, devagar, cada canto do mundo.

Temos o corpo trespassado pela dor de nada fazer.

Registamos cantorias ancestrais para ouvir nos phones.

Estendemos pontes com um sentido único.

Alimentamos fantasias e pomos peças em museus ansiando pelo bom selvagem que nos dê a mão e que, esperamos, tenha aprendido o perdão.

Difundimos forçosamente técnicas de civilização e estendemos estradas a dispersar sentidos.

 

Séculos e séculos a produzir filhos únicos.

 

04/03/2020

 

 

 

MEME

 

Um descampado espraiado entre seis paredes.

Tecto e chão revoltados.

As mesmas cores gastas e dessaturadas, desnaturadas e a falta de brilho das gargalhadas.

Dias parados em meios sorrisos, inaudíveis, a rir de um meme ou da memória.

Mas ainda uma certa excitação. O testemunhar atento de uma realidade inimaginada. A força interna da insubordinação, vestida dentro de um pijama a cancelar tudo.

Braços erguidos gesticulam o movimento de ficar. De estar. De ser. E estarrecer parado nisso.

Um bailarico cá dentro.

Ser os vícios do dia a dia e ser bastante. Bastar-se. Com os pés erguidos em luta a descansar as pernas dependuradas, cansadas dos tempos imemoráveis.

Mas ainda voltar a cantar pelos dedos. Arranhar ombreiras e depois pintar as unhas que crescem para raspar o mundo. A ânsia do que está por baixo.

Resta algum tesouro perdido? Não comido? Voltaremos a saber deslumbrar-nos sem um olhar pesado na côdea do pão?

Não houve bela sem senão. Nunca.

 

Ou como se justificaria tanta pancada?

 

05/03/2020

 

 

 

CALÇAR SAPATOS

 

O espaço que ocupo?

Precisamente a largura da sala se deitada no chão e braços estendidos para lá da cabeça. Do mesmo modo, em pé, tocarei no candeeiro.

Pelo corredor, da cozinha ao escritório são uns seis passos largos mas depois, sentada, as pernas caberão cruzadas debaixo da secretária.

Se agora esticar a mão consigo acariciar a parede à minha frente. Soube bem.

Eu, dentro das calças de fato de treino, tenho de apertar os cordões. Treino para não cair.

Na banheira fico com as pernas dobradas e a cabeça do lado do ralo.

Na porta de entrada mal caibo com dois sacos de compras. Se os largar e levantar o braço tocarei com a mão na bandeira. Tocar em bandeiras?

Em todas as outras portas acontecerá o mesmo.

Se encostada, posso cruzar uma perna sobre a outra e enquanto lavo a loiça faço-o em contraposto.

Facilmente crio uma diagonal no meu colchão. A cama é baixa o que é bom para calçar os sapatos.

O que é que eu ocupo?

Até ao jardim leva-me um lance de escadas de ferro e, na espreguiçadeira dá para cruzar as pernas à chinês. Pela manhã o chapéu de sol protege-me, propositadamente, apenas a cabeça.

Quais os limites da minha ocupação?

Tudo o que me rodeia limito-o, engolindo-o para dentro de mim e com isto devo ocupar meia dúzia de acontecimentos, algumas memórias em cabeças e arquivos, e 53kg de matéria.

No entanto, hoje, ocupo um lugar na primeira fila a tudo o que se me apresentar à frente. E bem que custa não ter um ombro para espreitar por cima, um corpo opaco que me faça sombra e outras vozes a interromperem-me as ideias.

O espaço que eu ocupo é alugado, não é caro e é muito suficiente. Tem janelas para que se batam panelas a resgatar-me desta lógica esquiva que me conspurca o pensamento.

 

Debaixo da máscara os lábios.

 

06/04/2020

 

 

 

ABRIL

 

Passado um quarto de século sempre a correr, ela percebe hoje que não sabe correr. E também que fuma muito.

Correu para nada em vez do 728 e logo as pernas bambolearam descoordenadas com os pulmões. “Humilhante” - diz ela numa passada rápida, tal é a ânsia de refrescar o ar fresco.

Mudar de ares. Arejar as ideias. Arrumar a cabeça. Arrotar decisões. Arear panelas. E dava tudo era para pôr um pé na areia. Mesmo sendo Abril ainda. Mês da liberdade ainda. Mesmo em casa. Ainda. Mesmo imposta. Ainda. Muito querida. Ainda! E nós a plantar cravos em canteiros.

Todos revolucionados pela força das circunstâncias e a cultivarmo-nos em águas paradas. Como nenúfares.

A sonhar alto mas um pouco enevoados, nebulosos, pardacentos, desfeitos em dias pachorrentos, nauseados pelos sofás e alumiados por ideias improvisadas.

Levantamos a cabeça e logo somos apardalados pelos pássaros que cantam enquanto nós ruminamos as mesmas notícias nove vezes ao dia. Que lodo. Que nojo.

Tanto nojo dos outros quanto de nós próprios.

O luto é geral.

Estamos já a sentirmo-nos a falta. A dar-nos o valor póstumo que todos merecemos.

Será que é desta que passamos a gostar uns dos outros?

 

Em todos uma ferida aberta, pestilenta, mas não a mesma cicatriz.

 

07/04/2020

 

 

 

GAMBOZINOS

 

Algo não está a funcionar.

 

Vejo uma dália no jardim.

Bem me quer/mal me quer/bem me quer/mal me quer/caridade/justiça/caridade/justiça… caridade.

A caridade, com os seus olhos de bem me quer como se fosse flor que existe.

A flor chama-se malmequer e esta é uma dália e foi dar ao mesmo.

 

À bela, nobre, sentimental e tão desigual caridade.

A justiça é só o que é. Que graça terá?

Também nós somos só o que somos e isso é-nos perfeitamente insuportável.

Então adiante.

Sejamos elegantes e não larguemos a mão da caridade, que nos é tão cara, tão dispendiosa, tão esforçada, tão sofrida na agonia e compleição da feição daquela, descalça, que nos olha e tão profundamente nos humaniza.

A justiça não. É só aquilo.

 

E nós somos sensíveis, susceptíveis, bons e assim artistas e queremos sentir.

Sentir empaticamente aquelas borboletinhas, pequeninas, no estômago, de quando aperta a fome. E, com a criatividade que nos resta, vamos certamente saber aguçar o dente para o rodapé e roê-lo em estilo caruncho e lamber os livros na estante a derreterem como gelados ou ingerir à colherada os aparos do lápis com um restinho de leite já azedo. E assim mantermo-nos unidos na suave impossibilidade da nossa própria existência.

Antes heróis que pessoas e, quando sujeitos à miopia da nossa tristeza, vestimos os óculos e a beleza da tristeza alheia.

Justiça é que não que isso é só o que é.

 

E agora vou ali caçar um gambozino e dar-lhe de comer.

 

08/04/2020

 

 

 

SINOS

 

O truque será manter uma distância relativa a cada corpo e uma proximidade afectiva a cada alma. Imitar o movimento dos corpos celestes no combate ao micro-corpo e sermos crescidos.

A tentativa esotérica coincidiu com o som do sino que marca a hora certa. Os sinos podem ainda tocar mas fazem-no como se nem todos os minutos contassem.

A cada batida continuo na impropéria sujeição a mim própria. Entornada num depósito em que nado contra a minha infantilização. De ser permeável. A pequenez de quem chora por causa de uma cólica ou que ri pela vibração de um raio de sol na palma da mão. A atenção distraída pela vagueza do ego. Esse, desesperado. A pendurar-se na estruturação de tarefas e rotinas, pouco levadas a sério pelo olhar que viaja.

Até uma qualquer planta, bem erecta e ritmada - caule folhas, caule folhas - parece rir-se desta entidade que escorrega do alto de si própria.

Haverá melhor alucinógeno que a solidão?

Haverá.

A grande festa de corpos, risos e música abraçados em estado de excepção e bem regados a álcool. Todos eles assustados, belos e alegres pela negação do amanhã.

A festa, portanto, continua a mesma.

 

Celebrar sozinho não ter uma pedra em cima mas sim um céu com os amigos por baixo.

 

09/04/2020

 

 

 

ASSUNTO

 

Um certo vazio de ideias.

Ao aproveitar o sol caiu-me uma lesma no peito.

Assustei-me claro, mas depois o susto passou.

Como um assunto, esgotou-se depressa.

Uma lesma, cansada e seca de tanto tempo a agarrar-se ao chapéu de sol, desistia, descolava-se e caia-me em cima, e com um ai mais umas sacudidelas, o assunto passava. Ele já lá estava antes de ser visto e permanecerá a rastejar pelo chão. Mas daqui, bastava um pequeno susto e uma reacção rápida para o assunto deixar de ser sentido no peito.

Ainda ontem era assim mas agora teima em permanecer. A lesma arrasta-se lentamente por entre o soutien, desce pelo peito até ao umbigo e sou eu quem fica presa no seu percurso. Na percepção de mim em contacto com esse pequeno corpo. Suspensa nas decisões da lesma. A considerá-la repelente, sem sentido. E eu paralisada e a secar ao sol.

Tudo bem. A cola que tínhamos no corpo está a secar.

 

Mas ao descolar voaremos para onde?

 

10/04/2020

 

 

 

FUNCIONÁRIOS

 

Há apenas um corpo. Com orgãos. Agora dilacerado. De momento desmontado. Para já decepado.

A baleia deu à costa e a auto-suficiência explodiu, como um velho mito dentro da sua barriga podre.

Todas as partes com falta de alguma coisa. As tripas de fora.

As formigas do carreiro foram dispersadas por uma criança.

O coração a bater sem corpo que o envolva e os tornozelos sem pernas presos ao pé de uma cadeira.

Pedaços em convulsões clamando pela velha liberdade. A una.

Uns apanhados em prisão domiciliária, forçosamente acompanhados pelos escolhidos e sempre a duvidar dessa força. Outros estavam sozinhos quando, à deriva, foram atirados para a solitária por mau comportamento e ficaram cheios de tempo para se reflectir.

A liberdade é termos, apropriadamente, o próprio tempo para nós próprios? O tanas.

O livre arbítrio caiu ao chão feito ovo podre. A ave não chegou a nascer.

Perante o cheiro nauseabundo ficamos calados. Os vapores são interditos e não partilháveis.

Bem visível à nossa frente tudo aquilo que as palavras não alcançam. Palavras despidas e com os limites à mostra.

E nós, por rendição, assumimos então a funcionalidade.

Meros operários da máquina humana. Todos funcionários uns dos outros.

A desligar a máquina.

 

Ir de castigo para o quarto à procura do sentido debaixo da cama e ter ainda de afastar os monstros.

 

11/04/2020

 

 

 

CINEMA

 

O meu vizinho do lado direito só usa o terraço para o varrer.

Enquanto o faz vai maldizendo o lixo que se acumulou, certamente culpa de alguém, sendo ele agora obrigado a limpar.

Aproveita a oportunidade para repetir muitas vezes:

- foda-se, caralho, puta que o pariu, isto não se faz, falta de respeito, puta que o pariu, que merda.

Por vezes dá-se conta de si e diz ainda:

- estou mesmo fodido, porra.

 

Ele já não é novo mas fala com muita energia e intensidade. Possivelmente tem as razões que tem para tanta indignação - esse lugar que ocupa com mais frequência que o terraço.

- assim obrigam-me a ser malcriado!

Disse agora, notando a minha presença.

 

Do lugar onde estou sentada vê-se a vizinha do lado esquerdo a tomar banho. Um duche.

O vidro é fosco mas a luz do sol, que a esta hora bate directamente na janela, reflecte-se no seu corpo tornando-o bastante nítido através do vidro.

Ela não faz ideia. Ela é bem bonita.

 

O vizinho do lado direito, se não estivesse de olhos no chão, poderia também apreciar a imagem.

Uma mulher que se lava, ensinaram-nos, é sempre cinematográfico.

Mas também ele o desconhece.

 

- afinal era cocó de pássaro.

Diz o vizinho à vizinha do seu lado direito que, entretanto, tinha vindo apanhar umas toalhas.

Reiterando a falta de respeito, pergunta-se de quem serão os insubordinados pássaros sem, nem por acaso, lhe ocorrer que talvez haja pássaros sem dono.

 

No final da conversa, confessa que, pelo menos, esteve ali entretido, a apanhar ar.

 

12/04/2020

 

 

 

VERNISSAGE

 

Uma posição de exposição.

Ficámos largados, embrenhados a moldar as várias solidões. Uns pedaços de nós que nos passaram para as mãos. Entretemo-nos assim para que sejam dignas de serem vistas.

Debaixo da máscara uma escultura em progresso. Barrenta. A expôr depois de bem vidrada e cozida.

Não queremos o olhar sobre o inacabado.

Sobre um feto.

Sobre um cadáver acabado de acordar.

Sobre um homem ainda não-feito ou sobre uma mulher despenteada, peluda, ramelosa, menstruada, esfomeada, cagada, esfolada e, ao mesmo tempo, tão imaterial que ofusca e assusta.

Ratificamos uma nova gestação.

Mas sabemos, por alto, que apenas virados do avesso poderemos ganhar.

Com as costuras à mostra.

Para já assumimos a gordura nas veias, a pobreza de quase todo o pensamento, a azia a meio da noite e a vontade de cuspir o mundo de já tão mastigado.

E continuamos a viver, tranquilamente, nas paranóias uns dos outros.

A lapidar. Na pedra. Sem escopro nem martelo.

A ignorar que nunca chegaremos aos acabamentos, que nunca estaremos prontos para a vernissage, que já não vale mostrar o semblante do sucesso para puxar a sorte.

Tudo o que nos resta partilhar é tão delicado e íntimo que não haverá mãos suficientes para acabar de o moldar.

Antes do fim.

Perante o fim.

Sabemos que toda a intimidade é abusiva. Estaremos preparados?

 

Para já vou experimentar abusar de mim.

 

13/04/2020

 

 

 

TINTA

 

Todos os dias acordo e sento-me em frente do mesmo quadro.

Olho-o expectante como se hoje me fosse finalmente falar.

Aprecio a sua perspectiva e o seu movimento interno. O gato que se move, o vento entre as folhas, as flores na continuidade da sua acção.

Relaciono a proporção de todas as coisas, absorvo a forma e o desequilíbrio entre si. O modo como as partes competem e dispersam a minha atenção.

Uma banda sonora surge, inesperadamente, de uma qualquer janela dentro do quadro. “take me home, take me to the place I belong…”. Imperativa e a ignorar a já comprovada obediência. Irritante de literal e ainda para mais a colocar a questão. “Where do I belong?”

Tudo está aqui, onde está, pelo acaso. A soma de vários pequenos gestos não coordenados e eu a olhá-los como se de uma muito bem pensada composição se tratasse.

Umas mantas negras, enormes, penduradas na direita alta, premonizam um qualquer luto.

É difícl contemplar sem lhe entornar sentido em cima. Fazer tudo coincidir só para me achar graça. Mas a graça escondeu-se no caos e na desarrumação e eu continuo a esmurrar com palavras a possibilidade de contemplação.

Antes de olhar o quadro tinha já lido a informação desgarrada, sempre nova, a acumular-se no telemóvel, e não fiquei mais que enfastiada.

Tanto o mundo como o discurso que lhe é dedicado estão-se nas tintas para que eu os compreenda.

 

Ficarei também nas tintas, dentro do quadro, onde pertenço.

 

14/04/2020

 

 

 

TRABALHO

 

A dormência do dia enfiada na vigília da noite.

Estado de alerta com os olhos fechados.

Desocupar o quarto para o despoluir.

Confundir canetas com canecas e engolir cafés sem efeito.

Enrolar.

Os dias, enrolar cigarros e enrolar o corpo para que se sinta.

Depois espantar.

Sacudir a inércia, calçar sapatos, esticar os atacadores mas ficar atada.

Mudar de ideias e caminhar corredor adentro. Do outro lado perdi a memória.

Ver da janela outras janelas e abeirar-me para conversar comigo própria.

Agradecer ainda ao sol por aparecer entre as nuvens e despedir-me.

Procurar o antídoto para o encantamento. A solitude.

Amargar na suavidade mais doce dos dias e tentar activar a sorte.

Esfregar o fogão como uma raspadinha.

Coçar o palato com a língua e depois correr a estender a roupa para fintar a chuva.

Desejar querer não querer o desejo e mesmo assim suspirar. Transpirar.

Por dentro. E enviar beijos em emoticons.

Abrir a boca para o que aí vem.

Engolir em seco os velhos projectos. Procurar novos materiais.

Rasgar as manhãs num impulso e logo a seguir achá-lo ridículo.

Pensar em ir ao supermercado.

Estalar os ossos ao mau feitio enquanto corro em círculos.

Constatar que os chinelos vieram da China.

Desfazer minuciosamente as expectativas, deitar-me no sofá e, finalmente, conseguir trabalhar.

 

Caiu o produto ao chão.

 

15/04/2020

 

 

 

CAROCHO

 

Estado de convalescença mundial.

Umas vezes falta a paciência, outras vezes a coragem, outras, mais trágicas, não falta nada.

Em quase todas se perdeu a paragem e não se sabe onde é o fim da linha.

Todos os dias faltam palavras, faltam caras e faltam nomes.

Muito nomes já morreram. Algumas horas faltaram.

E acontece faltarem frescos no frigorífico.

Há frigoríficos desocupados.

Muitos gestos em falta e faltam também acções concretas. As acções abstraem-se e vão-se embora.

Faltam visitas e anunciações. Falta enunciar. Faltam certezas sem dúvida. Falta a paixão a cobrir a ilusão. Não falta intensidade. Falta sinalização em novas estradas. Não falta lama nem terra batida. Falta conhecer o vazio.

Ressaca.

Não falta o mesmo revirar dos olhos no olhar sobre o qualquer, o arrumador de carros agora ainda mais mal empregado. Não falta a mesma repugnância pelo simples carocho e a eterna admiração pelo compulsivo enriquecimento de alguém.

Mas agora, estamos todos assim acamados, convalescentes, a desintoxicar do corpo os velhos hábitos e a tentar mascarar a privação.

 

Suspirando inconsoláveis no desmame da civilização.

 

16/04/2020

 

 

 

DEMENTE

 

Trabalhador independente. Uma condição autónoma. Independente dependendo do mercado, ditando a moda já escrita e reentrando. A trabalhar independentemente do quarto alugado. Virado a sul ou virado a norte. Na dependência da renda, do pai, do namorado e da saison. Inconstantemente a trabalhar o fim do mês. Trabalhador da semana sem fim, a rapar a conta negativa no fundo do prato. Funcionário de si alinhando-se com o marketing, a simpatia, os concursos, as promessas. A tecer elaborações com os olhos nos prazos. Orgulhosamente sozinho a integrar a multidão. Um olhar de soslaio como sempre. A saúde independente do seu corpo. Saco de pano ao ombro e escolher livremente o que os tostões lhe dizem para comprar. O livre árbitro do subsídio que não lhe calhou. Liberto de um patrão, mancebo de meia dúzia de directores. Com o olhar atento à passagem das nuvens. Trabalhador demente dependendo dos dias. Dos bons, dos maus e da sua criatividade. Raramente razoável. Génio ou pevides. A acordar quase sempre tarde demais. Várias vidas em atraso na frente da linha. Para lá da sua vontade a depender dos públicos. Alvos a atingir. Uma folha em branco debaixo do braço. A pender inconstante na direcção dos ventos. A exibir direcções. A ser pertinente para familiares e amigos e a deixar feito o que lhe aparecer à frente. Sempre a crescer a sua biografia. Uma vida mal paga. A cozinhar cada semana como se fosse sua. A lacrar contratos à mesa do café.

Glória independente da realidade e dependendo da fantasia.

 

Não da sua. Da dos outros.

 

17/04/2020

 

 

 

ESPANTA-ESPÍRITOS

 

Pergunto-me se conseguiremos alguma vez alcançar a quietude de um gato enquanto dorme.

 

Somos artistas de vanguarda.

Ocupamos o lugar da resistência e da insubordinação.

O que nos move é apenas a coragem perante o medo.

No mundo remoê-lo e revirar a terra para que traga os medos ao de cima. Que não criem raízes. Que se lhes colha a flor.

Mas na sua ausência? Em que guarda viveríamos? Armados de quê?

Saber morrer?

Não.

Viver alerta, viver desperto, viver na ansiedade, no futuro, viver na fantasia e no pessimismo que a esperança na realidade predita.

É levar murros no estômago para poder cantar. Abrir bem os olhos e tremer no medo ao fechar.

Um espanta espíritos em cada porta de acesso ao pensamento. Não entrar nunca sem fazer barulho, ser então silenciado e ainda assim resistir.

Há que projectar a voz e sentir o domínio sobre o corpo.

Mas eis que a vanguarda se fecha em casa, a arrumar a despensa pouco cheia. E tudo o que tem disponível são olhares raspados sobre o passado. A reinventar modelos antigos como quem adapta uma peça de roupa já gasta.

Aparentemente, ficámos parados, em pé, à espera que os estados proíbam a abundância.

Verdadeiramente paralisados no receio de um futuro quieto onde não se possa existir.

E o gato acorda com o zumbido de uma mosca que, provavelmente, passeou na merda.

 

Reabilita-se a miséria para conseguir dormir.

 

18/04/2020

FARDA

 

Progressivamente. Tudo irá voltando ao normal.

Mas.

Já dilacerámos o que sabíamos sobre o progresso e apenas ficamos normalmente parados. Pela última revolução industrial. Mergulhados online.

Será faseado.

Mas.

Já cancelámos todas as fases. Despimos horários, turnos e processos e ainda voltámos atrás, várias vezes, para varrer.

A abertura será gradual.

Mas.

Fechámos a porta numa só batida, bem fechada, e livrámo-nos de tudo o que nos recheava. Ampliámo-nos sobre o vazio e ficámos de pele curtida. Ao sol.

Mas. Mas.

Com que linhas nos podemos coser?

Mas. Mas. Mas.

Entretanto bolbos desabrocharam, pessoas choraram, crianças tiveram saudades de outras crianças e os velhos baralharam-se com a antecipação da morte, sua singular companhia.

A gradação foi varada pelas grades cerradas na possível liberdade da clausura.

E agora é em bocadinhos de assim?

Entregam-nos a roupa já tão metida no armário e com o mesmo cheiro de quando a despimos pela última vez.

E nós fardamo-nos. Assim.

E iremos marchar, toscamente, pela rua, ao ritmo do olhar nos outros.

O olhar recíproco. Equívoco.

A buscar o avalo alheio e a perguntar-se se será assim que se faz.

 

Deter o tempo do mundo é cair em todas as suas demandas. Muito cansativo.

 

19/04/2020

 

 

 

MERCADORIA

 

Embrulhas a caneta na mão para aprofundar o tédio.

Fazes yoga para conviver com um vídeo gravado.

Insistes em esticar o corpo para continuar a quebrar os dias.

Diz tensões.

Rupturas sociais.

Falas da solidariedade em rede e abres a janela do quarto interior.

Passam-se inúmeras coisas na vida dos outros.

Facilmente imaginas a vida difícil.

Como uma novidade. Fresca. Inacabada. Imprecisa.

Improvisas com os clichês ainda disponíveis.

Oras para dentro.

Agrupas as necessidades como mercadoria.

A polir os instintos mais básicos e discordas com quem não concordar.

Fincas o senso dos pés na sola comum.

Atiras ao ar a continuidade e acreditas conhecer a mecânica da queda.

A gravidade é coisa banal.

Cem horas para brincar.

Albergas-te sozinho em casa e pões um grupo a viver na tua mente.

E a achar que de um dia para o outro vai ser bonito intrometeres-te.

Enfiar em ti a coisa alheia.

Tu e cada um a saber o que é melhor para o outro enquanto se decora as recomendações governamentais.

Governar mentes entre sinapses e cuspo.

E tanta a certeza de saber como é que gostas de ser beijada.

 

Bem alinhados desviamo-nos mutuamente

 

20/04/2020

 

 

 

EM FRENTE

 

Há um mês que somos levados pela corrente.

Sabemos flutuar. Não é mau. Agarramo-nos a bóias trazidas de um outro lado.

Casas, filhos, poupanças, livros, fé, notícias, congelados e enlatados. Claramente. Tudo no mesmo ensopado.

A solidaridedade e o narcisismo de cada lado, como remos. E as pernas irrequietas pontapeiam as profundezas para elas não virem ao de cima.

Os animais imersos e com os olhos de fora de uma máscara qualquer, receiam a visão da terra firme. Crocodilos?

Deleitamo-nos assustados com a fantasia do que nos espera ao atracar. Uma excitação mórbida. Por vezes. À falta de outra.

Será escarpado? Arenoso? Falaremos a mesma língua? As mesmas roupas irão servir? Valerá a pena o meu corpo? Poderemos falar enquanto mastigamos? Frente a frente? Onde será a frente?

Será ainda o vento a acariciar-nos as costas.

E se, estando na rua, não souber para onde vou? Dará direito a multa?

As visitas talvez continuem semanais e o agora a mesma unidade de tempo.

Barbateando os pés e de barriga virada para o céu sigamos tranquilos.

 

Até bater com a cabeça na outra margem.

 

21/04/2020

 

 

 

 

DIÁRIA

 

Faltam quinze minutos.

Hoje a contagem é excepcionalmente decrescente. O tempo fugiu para as vinte e três e quarenta e cinco.

A impossibilidade de o domesticar. Tempo selvagem que domina com o poder da sua ilusão. Aterrorizamo-lo? Como? Poderei falsear a mentira e deixar isto para amanhã? Sendo diária a ficção, não saberei como. As criações ficaram aflitas.

Serei então fiel à traição da realidade a cada palavra usada. Não deixarei morrer a folha em branco. Há que primeiro cuspir-lhe em cima. Benzê-la.

Deste modo abrigar-me obrigando-me.

Construir narrativas como casas, cabanas, tendas, toldos, cascas, buracos no chão a olhar para dentro e depois chamar-lhe a minha visão do mundo.

As carapaças estão de língua de fora.

O betão foi desarmado. Demoli-o para usar os pedaços em novas construções mas não faço mais do que andar sobre as pedras.

Pelo caminho fixar contratos com o tempo para que nos exija imortalidade. No regresso é ponto assente que morreremos na mesma.

Na mesma vida.

A correr contra o tempo e atirada de encontro à palavra que dei a alguém: diário.

Não dá para pedir de volta. Nem a alguém. Nem ao tempo que volte. Nem aos dias que se revoltem. Nem aos amigos que mesmo revirados que apareçam. Desimunes. Tanto àquilo como à infecciosidade das palavras.

 

Dores nos ócios.

 

22/04/2020

 

 

 

ALBERGUE TEMPORÁRIO

 

Para exercitar um regresso suave à sociabilidade.

Gerir, como que estendendo sobre uma mesa, a acumulação de assuntos.

Lembrar quais eram os assuntos.

Espantar o ar assustado abrindo portas e janelas.

Encontrar tópicos que não se reduzam à situação mundial.

Ser simpático. Ser natural.

Ser alegre sem ter de olhar o contentamento.

Não pôr tudo em questão.

Aceitar que ficámos mais velhos.

Aproximar sem toque os dias difíceis.

Normalizar o excepcional elogiando a particularidade.

Acrescentar suavidade na voz. Articular bem.

Não estranhar demasiado o silêncio instalado.

Desinibir o vazio e tomá-lo como um novo hábito. Cultural.

Não sentar ao colo.

A meio, agradecer a visita e continuar sem hora de fim.

Evitar pretender que se sabe algo do amanhã.

Não lamber os dedos que gesticulam à tua frente.

Não falar tudo mas vasculhar no que contar. Chafurdando.

Voltar a apreciar os sorrisos sem delay.

Resistir ao cheiro humano.

Organizar as ideias.

Traduzir por miúdos. Perguntar pelas crianças.

Perceber que tudo o que é pessoal parece até bastante previsível.

Não esperar por novidades.

Oferecer cervejas mas sem grande pressão.

Aproveitar a espuma.

Não meter nojo. Não mostrar nojo. Não ter nojo.

Na despedida refrear o entusiasmo por combinações impossíveis.

Ser um albergue temporário.

No dia seguinte talvez alguma dormência por teres relaxado de ti.

 

O alívio da natureza a entrar em pousio, no ombro.

 

23/04/2020

 

 

 

ENVERGADURA

 

Antes que os dias se passem. Da cabeça. Alongar os tecidos. Ter fibras para tecer. Flexibilizar as previsões atmosféricas e viver cada dia como um novo ensaio.

Apesar de irmos rastejando a memória persiste bem organizada nas funções do corpo.

A cada corpo dois metros a mais de volumes cúbicos. Moles. Cada qual sem começar onde acaba o outro. Carnes intercaladas com porções de ar. Suspiradas.

A cada inspiração o ar necessário e temível.

Ele move-se e nós com ele e ele connosco a agitar os tecidos e a estender a envergadura.

E o limite do corpo nestas mesuras de braços caídos igual aos braços abertos a ambicionarem os dois metros de caminho para o abraço.

Nostálgica ocupação.

Destas alturas para que serve o comprimento dos braços?

Conspirar ilegalidades bem medidas antes que os dias se passem e organizem uma rebelião.

Eles cabem em nós e cabe-nos a nós, discretamente, amansá-los. Pequenos atrevimentos amigáveis, calorosas palavras com falta de jeito e alguma ginástica para se ser amoroso.

 

Que saudosa a hora de ponta promovida pelo metropolitano de Lisboa

 

24/04/2020

 

 

 

PLENOS PULMÕES

 

Como representar a liberdade quando confinados pela fragilidade?

Queriamos tanto marchar. Experimentar a sincronia das vozes, a coreografia comum.

Macarena.

Sentirmo-nos. Juntos porque assim decisores.

Queremos representar-nos, propriamente, todos, sem partes quebradas e sem portas na voz.

Olhar por momentos a fagulha do bem comum, fora da selecção, caminhando lentamente e longe da ânsia de chegar primeiro.

 

A meta no próprio caminho singularmente comum.

 

Pouca ideia da liberdade e tão cientes do seu contrário. Grades, fardas e mordaças. E a imagem de cães dentro de uma caixa.

O receio lá fora.

Se ao abrir a caixa seremos cães de corrida esfomeados numa mesma pista. Obrigados a satisfazer as apostas dos nossos donos. Quase todos os dias. Várias vezes ao dia

 

Mas hoje não é dia de vida de cão, por isso ladremos a plenos pulmões que vamos para onde queremos e que a morte não nos atrai.

Chorando alto e sem vergonha.

Exercitamo-nos alistados.

 

Uma réstia de medo talvez.

 

Que, ouvindo-nos, se nos chegue um grande pai, pronto para cuidar de nós, das nossas ideias e das nossas vontades. Com comida à hora certa, banho e roupa lavada e colocando-nos na boca a língua que devemos engolir.

A cada rosto igual de medo.

Mas temos as mãos livres para desfazer viroses.

 

E as azinheiras sempre. A unirem-se ao sol para alongar as sombras do final do dia. Como uma arma.

 

25/04/2020

 

 

 

THRILLER

 

Vamos sair à rua armados da consciência. Inocentemente a significar perigo.

Portadores de uma morte comum e aleatória e a absorver qualquer ameaça.

O thriller generalizou-se - monstro, tubarão, vespa, míssil...

Todos os corpos possessos. Zombies sem mordidas, sem vontade nem intenção.

A qualquer passo podemos dizer “desculpa lá, foi sem querer”. Pisadelas inadvertidas.

Leva-se a passear a possibilidade de extinção comum. Na trela.

Mas na mesma queremos envolver tudo, devolver a vida aos dias. Buscar no fundo do poço a fonte - cálice, antídoto, droga, entretém e vitalidade.

Querer ser perene, tranquilo, bem-vindo, importante.

Querer calar a natureza que nos diz que não podemos brincar.

Querer renovar os votos de amizade numa sala pequena, cheia de gente e de risos.

Mas não.

Há que contar cabeças, imaginar cada uma a dois metros de distância, e assim espalhá-las pelo mundo. Relativamente. A ocupar geografias de um modo geométrico, matemático, diplomático, burocrático e equidistante. Campo ou cidade, tanto faz a desigualdade.

Plantação intensiva, nós quietinhas, a sugar os nutrientes da terra pela palhinha e privadas do prazer. A falar alto para que nos ouça a mais próxima. Talvez não a mais amada. As outras, a perder de vista pela planície. Tanta a força a exercer para levantar raízes e de novo caminhar.

Mas vamos dividir a imunidade devagar, como um pedaço de pão, comum.

Antes que se assuma como inequívoca a nossa dispensabilidade e apesar de ser tarde.

 

Cortamos as unhas pela raíz para não arranhar.

 

26/04/2020

 

 

 

FORMICIDA

 

Vamos levar a melancolia embrulhada em desejo. Vamos levar o fértil vazio da imaginação. Galopante e disforme. Tudo a acontecer escorregando entre os dedos.

20 mil mãos por agarrar.

Vamos continuar a engolir a mesma saliva pouco arejada por palavras. O encantamento vicioso de ter os dias contados sem os saber organizar. Vamos reaprender a viver no espanto da novidade e com tão pouco ao dispor. Vamos por ideias num mundo futuro mas já não saber o que inventar para jantar.

Vamos ir.

Assado lento e uma escuta duvidosa. Vamos sussurrando timidamente, expelindo pela boca alguma tentativa de pôr ordem nisto. Vamos em micro macro micro pulos a parar nos buracos da História mal contada. Vamos. Antes cantar desafinado do que o som calado.

E vamos.

Aprender a baixar as armas para não ser fustigado, fulminado, formicidado. E relaxar nas areias de construção a apanhar sol, a lançar sementes e a acreditar em oásis.

Vamos enlaçar realidades pequeninas e amamentá-las com a pouca expectativa que nos sobra das grandes magnitudes. Vamos morrendo em ordem decrescente para fazer crescer a possibilidade de duas pessoas se encontrarem.

Obrigadas então a amarem-se sem condição.

 

Perante a possibilidade de não haver mais ninguém, para já, está bom.

 

27/04/2020

 

 

 

CHICLETES

 

O inimigo é o outro. Já se sabe. Sempre se soube. É ensinado nas escolas e religiões e finalmente, assim à mão, a prova provada da paranóia universal, transversal e intemporal.

Viva! A confirmação de que a loucura se torna razão, a razão se torna loucura.

 

Mas existe o problema. As leis naturais. E tudo ser absolutamente relativo.

Para ti sei que serei o outro, a outra, a ilegítema, uma qualquer, a não ser que te entre cabeça dentro o que provavelmente não. Mas cá fora, nas praças, vou também levando pela mão tanto a vítima como o carrasco. Orgulhosamente na rua.

E tu também.

Todos assassinos internacionais muito frágeis e susceptíveis assim como figuras que, mesmo quando públicas, não são mais que números, que vítimas. E co-habitamos sem nada de heróico que nos distinga.

Mastigando receios na boca. Chicletes como bombas. Expirando perigos e inspirando ameaças.

Tosse, bafo, beijos e cantorias.

O cano de uma arma virado para dentro e outro virado para fora.

E mesmo sabendo que sempre foi assim.

Agora com o avesso todo à mostra vêmo-nos estrábicos. Dois olhos e cada um com com o seu destino. Lado a lado melhor que frente a frente e a cada passo ambas as condições.

Olhamo-nos.

 

Com a mão na boca, a boca nas mãos e o coração no medo.

Onde sempre esteve.

 

28/04/2020

 

 

 

 

CULTURA

 

O vento bate na clarabóia, ensurdecedor. Assobia pelas frechas de qualquer coisa. O homem trauteia na rua debaixo da máscara. Em casa chega ansioso e bate na mulher ruidosa. A água escorre sarjeta adentro. O velho cospe o vinho garganta fora. Os pés arranham o chão dos corredores. Os gatos raspam a areia para tapar a merda. O puto coça a cabeça sem piolhos, impaciente. A mulher também coça, mas o sovaco mal rapado. A minhoca enfia-se toda dentro da terra molhada. O ministério enfia-se todo dentro de si próprio e coça a comichão que algumas vozes provocam e raspa o fundo da panela vazia de ideias e arranha pancadinhas nas costas e cospe para o lado o que não quer engolir e escorre-lhe consciência pelos ouvidos fora e assobia contra o vento para só se ouvir a si e bate na mesa as poucas palavras apreendidas e ensurdecedoras. O artista sapateia, canta, esculpe, rabisca, põe online, desfaz-se, escorrega, levanta-se, dança e ainda decora os textos escritos nas candidaturas à falta de inspiração.

 

Corpos belos para canhão.

 

29/04/2020

 

 

 

LAMBUZADA

 

as horas já se retiraram. já só falam os contentores do lixo lá fora. o corpo estendido. dormente excepto os dedos dos pés. os pensamentos sujeitos à evaporação. as palavras aqui caídas como quem atira os sapatos para o canto. poder estar assim sem saber os segundos da noite e não destinar o dia seguinte. viver atrasada nos tempos antigos. lambuzar os olhos com as pálpebras que pendulam no ar.

não me activei para ir dormir e em vez disso adormeço. conjugar verbos de modos diferentes. caneta na mão e os dentes sujos. os ouvidos a fecharem-se ao som de um apito. a cabeça a afastar-se do braço. mais de dois metros entre. a mão a desistir da sua força e mesmo assim o sangue flui. a luz a apagar-se. Sozinha. com o fechar dos olhos. a respiração a descer da ânsia da garganta e a escorregar pelo corpo toda lesma. tudo lento. um ritmo compassado com toda a gente. aparentemente. e com os pântanos o granito e a estrela mais longínqua.

isto não é férias. nem é sonhar. e já não tenho como direito a fantasia. está descansada. dorme.

 

tenho a ilegalidade e pouco mais. de poder nascer e morrer várias vezes ao dia.

 

30/04/2020

 

 

 

 

DEGRAU

 

Dia do que faz coisas. Dia do sonhador de uma outra vida. Melhor. Dia de quem produz automóveis e ferros de engomar, de quem opera e de quem nunca foi à ópera, de quem cozinha o que não come e faz camas onde não se deita. Dia de quem serve serviços servidos pela empresa e é mal empregado. Dia de quem não sabe o que faz mas já nasceu a picar o ponto. Dia de quem tem férias marcadas para existir. Dia de quem dorme pouco à noite e recebe bónus por isso. Dia de quem veste a farda mas não gosta da cor. Dia de poucos subsídios e de ameaças de despedimento. Dia de não estar grávida, do que passou a vida a semear e esqueceu-se de ir colher. Dias, semanas, meses, anos, décadas para subir um degrau e cair para trás, de cansaço. Dia de quem tem de ter respeito porque, de quem limpa cús e lava o chão, de quem é ilegal e constrói legalmente com materiais ilegais a legalidade de pedir licença ao licenciado empreiteiro apreendido pela construtora que o deixe ir ao casamento da filha mal casada e ainda oferece electrodomésticos. Dia do orgulho de trabalhar honestamente para a corrupção. Dia do que já nem tem tempo de mastigar direitos. Dia do se não fores tu é outro.

 

Noite e dia, noite e dia, sem anjo da guarda, a servir a mesma companhia.

 

01/05/2020

 

 

 

A DESCOBERTA DO PÃO

 

Vamos indo. Banalizando. E já não se olha tanto a números, mortos, dias ou tempo em falta.

Normalizou-se o canto repetitivo dos pássaros pela manhã, o choro de duas ou três crianças, o ladrar dos cães e o silêncio dos gatos.

Entram os hábitos no corpo sem rotinas. Dormir, comer e imaginar. O trabalho atravessa tudo mas a fingir que é outra coisa.

Encontros entregues à imobilidade de falta de histórias para contar. Quase tudo pouco mais que pensamentos.

No passo atrás. Um pé no ar à espera da vacina para pousar. Saltitamos já pelas ruas sem riachos nem afluentes. Dentro das casas barragens cheias e profundas. Comportas fechadas a secar os rios e os caminhos cruzados.

E já nada é feito extraordinário, nem hoje nem amanhã. Nesta pós-extravagância doméstica da descoberta do pão. E será até normal se o pão faltar.

O singular espalhou-se mas a luta continua e nem se dá por isso.

Mesmo a possibilidade de tropeçar na calçada, de ir contra alguém ou de ser atropelado parece uma dança antiga. E foram muito mais que três voltas ao quarteirão.

 

Voltaremos a encontrar-nos por acaso.

 

2/05/2020

 

 

 

APARTADOS

 

Enquanto o ar for virulento. Havemos de chegar ao cerne. Enquanto as bocas não se abrem. Havemos de plantar bolbos. Enquanto as pistas não acolhem. Havemos de dissecar tudo. Que os corpos não nos faltem. Não haverá razão que nos escape. Tudo para análise. Enquanto nada nos deixa. Enquanto as praias forem intermitentes. Apartheids teremos. Apertados havemos de encontrar água nos canteiros. Enquanto as plantas crescem, havemos. Aprender de tudo a comer frutos secos. Enquanto o Verão não servir para atiçar paixões. Havemos de embarcar em todas as palavras. Expandir vocabulário na articulação do maxilar. Vão ver. Havemos de bocejar. Não havemos de perder por esperar. Pelo menos não tudo da parte que falta. E para mais, havemos melros nos quintais. E havemos de contar os trocos no banco. Enquanto isso. Enquanto não houver bancos para sentar e não se cruzarem crianças com velhos. Enquanto não houver caracóis. Havemos de perceber a plenitude do vazio e a sua náusea. Havemos de escapar a voar pela janela. Enquanto a Segurança Social não atende as chamadas. Havemos de comer urtigas e reagir. Enquanto isto. Havemos de tudo isso. Enquanto os teatros não abrem. Havemos de aprender a não investir. Havemos. Ruminar ideias sem as cuspir.

Ao cerne. Havemos de lá chegar sem ter ido muito longe.

 

Com um simples olhar para debaixo dos pés.

 

03/05/2020

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